quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Sejamos felizes porque loucos, nós já somos.

 

A vida, esse espetáculo sem roteiro fixo, exige de nós uma certa dose de insanidade para sobreviver. É preciso ser muito louco para acordar todos os dias e enfrentar o mundo, onde, em pleno século 21, homens fazem guerras entre si, mulheres e crianças morrem na guerra ou de fome, onde ainda existem homens em condições degradantes de trabalho, onde jovens não horam pai e mãe, e a maldade quase sempre prevalece sobre a bondade. No caos cotidiano a loucura tornou-se a nossa mais fiel companheira. E tão loucos somos, que seguimos acreditando, desejando, tentando – apesar de tudo. Lembrei-me, agora, do que disse a escritora Clarice Lispector em um de seus livros: “Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive é o próprio ‘apesar de’ nos empurra para a frente”. E nessa loucura, descobrimos que somos loucos porque ainda amamos, mesmo com o coração marcado por tantas partidas. Loucos porque sonhamos, mesmo com o peso das decepções nas costas e mais: que a felicidade não é um destino, é um instante fugaz, mas nosso. Sejamos felizes então, mesmo que a felicidade venha em dozes pequenas como o riso compartilhado com quem entende nossa loucura sem julgamentos. Sejamos felizes nas imperfeições, nas pausas, nos tropeços. Sejamos felizes porque estamos vivos, e isso, por si só já é um ato de coragem em um mundo que nos quer conformados. E que cada gargalhada seja uma forma de resistência, cada abraço um refúgio, cada suspiro um lembrete que, mesmo sendo loucos, ainda podemos ser felizes. E se a vida é uma peça improvisada, que sejamos protagonistas das nossas próprias histórias, mesmo quando tudo parece ruir a nossa volta. Porque, no fundo, o equilíbrio perfeito é só uma ilusão, e o que nos mantém em pé, é essa dança descompassada entre o sonho e a realidade, buscando entre a loucura e a poesia, o brilho que nos faz vivos.

Maria Lúcia de Almeida

Natal / 2024

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Fim de ano ou fim de mundo?

Esperava ansiosa o final do ano e este, quando  chegou, veio agregado ao fim do mundo. E não  veio com meteoros flamejantes, nem com o rugido das trombetas apocalípticas, veio numa segunda-feira qualquer,  porque o caos sempre escolhe dias ordinários. 
Primeiro o wi-fi caiu, depois os gatos pararam de farrear nos telhados e isso, para mim, foi um sinal claro de que algo estava profundamente errado. As pessoas sairam às  ruas com o olhar perdido, não por medo das chamas, mas porque a Internet  não funcionava mais. Olhei para o céu e ele, em um gesto dramático,  resolveu mudar de cor, um roxo fosforescente que nenhum filtro de instragram poderia reproduzir Enquanto eu contemplava extasiada a valsa desajeita da das placas tectônicas,  a humanidade teimosa e um tanto cômica,  decidiu fazer o que sempre fez: reclamar.
" Fim do mundo? Logo agora que comprei  vestido e sapatos novos ? "
" Podia ter esperado terminar o mês,  aí eu não precisava pagar as contas". 
Assim, entre o tremor dos continentes e a perplexidade dos incrédulos,  alguém  abriu uma garrafa de vinho, porque o mundo pode  acabar, mas não antes de se fazer um brinde!
E no último suspiro da Terra, como toda boa poetisa, eu apreciava as estrelas caindo do céu como enfeites de uma festa cósmica. 
Bom, pelo menos o espetáculo foi bonito de se ver. E, então... o mundo acabou. Quieto. Exceto pelo som distante de uma notificação que ninguém nunca mais leria :
 " Cuidem bem da mãe-natureza."

Maria Lucia de Almeida 





  

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Nas marcas do tempo


Perto de completar 70 anos, e dentro da quietude de meu quarto, deixo que as lembranças me envolvam em um manto nostálgico e acariciem minha alma com as asas da juventude.  Quanta saudade da leveza de meus passos, da inocência no olhar, da coragem desmedida a seguir em frente, a caminhar sem destino, e da liberdade de poder partir a qualquer momento, livre das amarras do tempo. Que as lembranças da minha juventude possam me abraçar mais uma vez, conduzindo-me por caminhos de sonho e liberdade. E que os ventos da aventura voltem a sussurrar em meus ouvidos, instigando-me a descobrir segredos ocultos em cada esquina, a sentir a pulsação da vida em cada cidade, em cada paisagem.  Voltar a ver o mundo como uma vasta terra de possibilidades e sentir como se cada estrada, cada trilha chamasse por mim, convidando-me a mergulhar de cabeça em uma jornada sem fim.  Fechar os olhos e ouvir novamente o som das ondas que quebram na praia, enquanto meus pés tocam suavemente a areia morna, ou andar nas ruas estreitas das cidades antigas onde cada pedra parece contar uma história. Mas não quero e nem vou fazer dessas lembranças um lamento do passado. Ao contrário, quero sim, através delas, poder voltar mundo a fora, desbravar horizontes e continuar colecionando memórias que alimentarão minha alma até o fim dos meus tempos.  E, principalmente, ter a certeza que cada momento, por mais efêmero e fugaz, é como um lembrete da preciosidade que é existir, amar, perder e, acima de tudo, viver. E, assim, no embalo de minhas lembranças e diante da efêmera centelha da vida, sou chamada mais uma vez a dançar na chuva, a amar com toda força de meu coração, a deixar minha marca na areia do tempo, sabendo que, como o dia se despede no horizonte, tudo é temporário. E nessa temporariedade, nessa finitude, encontrar a verdadeira essência do que significa ser infinitamente vivo. Que assim seja, que assim eu deseje, que assim eu possa sempre ser.

 Maria Lúcia de Almeida

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

BLADE RUNNER

 


Entre as sombras futurísticas de uma cidade perdida, onde a chuva e o neon dançam um balé de cores, ergue-se a obra-prima cinematográfica chamada Blade Runner.
Sob a brilhante direção de Ridley Scott, o filme nos conduz a uma jornada inquietante e reflexiva em um mundo imaginário e  melancólico, onde a essência humana é questionada, e as máquinas são dotadas de uma complexidade emocional profunda, de uma identidade tal com o ser humano, que ecoa na alma do espectador.
 Nos labirintos da cidade decadente, acompanhamos o caçador de replicantes, interpretado magistralmente por Harrison Ford, mergulhar em um dilema moral, oscilando entre o dever e a empatia com os androides, entre a humanidade e a artificialidade.  Os olhos dos replicantes refletem o vazio e, ao mesmo tempo, a   busca incessante que vai além da existência programada, eles ‘replicam’ por mais vida. Em meio a essa teia de sentimentos, a presença enigmática de Rachael (Sean Young) surge como catalizador de reflexões. Através do olhar de Rachael, uma androide, somos convidados a confrontar nossas próprias limitações. Ela é a perfeição imperfeita, um anseio por algo mais humano do que a própria humanidade. A trilha sonora de Vangelis abraça cada cena, elevando-a à transcendência, enquanto a atmosfera noturna envolve-nos em sentimentos inexprimíveis.
Blade Runner é uma ode à poesia do cinema, uma celebração da imaginação humana e um convite à reflexão sobre as complexidades do ser. Nele, a tecnologia e a humanidade dançam uma valsa etérea, tecendo uma teia de significados e emoções que ultrapassa  o tempo e o espaço. 
Em Blade Runner não encontramos apenas um filme, mas uma experiência transcendental que ecoa em nossa alma como um lembrete de que, mesmo em um mundo repleto de máquinas, ainda seremos capazes de ir em busca de sentido e significado para contemplar o que realmente nos torna humanos. 

Maria Lúcia de Almeida

segunda-feira, 3 de abril de 2023

"Escrevo para libertar palavras e faço isso antes do pôr do Sol."


Quando estou triste, gosto de contemplar o pôr do sol; e a cada espetáculo desse que contemplo, inspira-me o desejo de partir para um oeste tão distante quanto aquele onde o sol sumiu.  De acordo com Rubem Alves, somos seres crepusculares a espera do pôr do sol de nossas vidas,  é verdade, pois sendo a tarde a velhice do dia, quando o sol se põe no horizonte, uma pequena morte ali sempre acontece. Ah, e como é belo o pôr do sol visto pelo olhar do poeta ao enfatizar a finitude da vida e dos afetos. E eu, que bem sei o que é ser flor nas asas de uma ventania, alargo meu horizonte para que o sol possa se pôr 'redondinho', sem precárias valentias, sem mais expectativas ou sofrimento. E com os olhos fitos no poente, deixo a paz falar manso no silêncio de meu coração. Percebo o quão fúteis foram meus dias repletos de esperança para um final feliz, daqueles de cinema, sabe, em que no final 'tudo se ajeita'. Agora percebo que a sabedoria que vem do natural é muito mais doce, é a sabedoria da maturidade a me dizer: "tudo é porque tem que ser, tudo um dia se acaba porque precisa acabar, ou quem sabe, porque esteja perto o momento do nosso 'pôr do sol'. O pensamento voa nos traços da memória e pergunto ao  silêncio o que ainda tem a me dizer que precisa ser compreendido, e ele me faz lembrar das nossas perdas constantes, daquelas  não só dos entes queridos, mas perdas em geral, de espaço, de tempo, de planos e de certezas que se vão, naturalmente, findando com o tempo e que também fazem parte da nossa jornada de vida. E daquelas perdas tão necessárias para nossa integridade moral que  são as relacionadas ao medo: das injustiças, das mesquinharias, das covardes ameaças de abandono e da solidão. Isso porque a gente aprende a reconhecer a força que temos e, principalmente, a força que vem da bondade divina, que nos dá coragem e nos mantêm em pé todos os dias. E sendo a  verdade a filha do tempo, tudo que ainda lhe peço, senhor tempo, antes de meu pôr do sol, é que eu saiba cuidar muito bem de mim mesma, com leveza, dignidade e aceitação. E, principalmente, que eu saiba tirar de mim a perigosa ânsia de que ' tudo tem que ser feliz até o final'.

Maria Lúcia de Almeida


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Pandemia

Sempre que penso nos anos de 2020 / 2021, penso num  filme de ficção científica: “ Em uma galáxia, muito, muito distante...”, imagino-me vivendo em um futuro próspero, em carros voadores, casas flutuantes, robôs e viagens pelo espaço sideral.
No entanto, ao contrário do que penso ou imagino, a nossa realidade nesses anos é bem outra, pois na era  em que a humanidade se encontra imersa em uma cultura digital, eis que surge um vírus, vindo lá da China, que acaba por nos isolar em nossas casas. E fecha escolas , restaurantes, bares, bancos, academias de ginástica, salas de espetáculos e o comércio. Um vírus que chega nos causando grandes perdas, não só de entes queridos e conhecidos, mas perdas em geral, de espaço, de tempo, de planos e de certezas.
A pandemia do corona vírus não só isolou as pessoas em suas casas, mas também fechou as fronteiras entre países. E, numa época em que impera  o individualismo, o egocentrismo, surge um vírus que nos faz pensar e repensar a realidade.  Um vírus que nos deixa com uma profunda sensação de solidão, enquanto  nos mostra o quanto precisamos uns dos outros e que,  querendo ou não, somos e fazemos parte de um todo, um todo que precisa ser salvo.
A pandemia do corona vírus tem nos feito encarar a realidade e concluir que é impossível continuarmos seguindo o mundo da mesma forma.  Precisaremos antes de mais nada da cooperação em escala global. Teremos que sair do isolamento e do individualismo para um sentimento forte de coletividade. A educação deverá ser voltada e orientada para a solidariedade e a cooperação. Haverá, mais do que nunca, a necessidade de uma nova consciência voltada, principalmente, para a criação de um escudo universal que proteja e imuniza todos os membros da comunidade humana.
O fato é que estamos sendo forçados a perceber que um vírus, apesar de microscópio, pode ser maior do que todos nós, e que no futuro precisaremos nos adaptar de forma rápida a uma nova realidade, pois o mundo de antes, o mundo individualista dos interesses mesquinhos  e do ‘salve-se quem puder’, felizmente, jamais retornará. 

Maria Lúcia de Almeida

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Escolhas Necessárias


Criei o costume de toda semana comprar sequilho com goiabada na padaria perto daqui de casa.
Comê-lo bebendo um café sem açúcar tornou-se, sem exagero, um dos momentos mais deliciosos da semana. Mas a goiabada me incomodava.
Não necessariamente ela, mas a pouca quantidade. Era um pingo no meio do sequilho. Reclamei na padaria , chamei o padeiro de USURA e tudo o mais.
Outro dia, voltando do trabalho, passei pela padaria e para minha sorte, disseram que havia um sequilho especial para mim. Lá estava, o meu sonho num sequilho de um real.
Quase completamente coberto de goiabada. Chegando em casa, preparado o café e toda a ritualística necessária para consumir o apetecível sequilho, ocorreu que não comi nem a metade.
Enjoei na segunda mordida, doce demais, chegava a dar náuseas.
Dia seguinte, cheguei na padaria e lá estava: outro sequilho coberto de goiabada. Ofereceram-me , e por vergonha de dizer que odiei o do dia anterior comprei.
Em casa, raspei a goiabada e comi. O problema, o inferno, não era a goiabada, nem o padeiro, era eu. Fui eu quem, amando o que amava, queria do meu jeito, sem entender que eu gostava era do jeito que era, porque se do me jeito fosse, eu rejeitaria, enjoaria e até tentaria fazê-lo voltar a ser como era.
Assim fazemos com as pessoas também. No início as amamos como são, depois que estão conosco, começamos a criticar, tentamos muda-las, tentamos ‘coloca-las do nosso jeito’, sem saber que nosso jeito são nossas projeções pessoas que não existem, e que se existissem, enjoaríamos delas.
Transformamos para descartar, porque quando aquela pessoa muda, muito provavelmente quem gostaríamos não está mais lá.
Essa semana voltei à padaria, pedi o sequilho sem goiabada e mandei avisar ao padeiro que a receita original dele é que era a boa e não minha versão.
Abençoados sejam meus amigos, cada qual a sua maneira e o seu jeito de ser.

Autor desconhecido.

Em homenagem à cada amigo que, com seu jeito diferente de ser, não devemos desprezar nem ignorar, muito menos querer mudar. Vamos amando uns aos outros e respeitando as diferenças. Mas se o amigo não entende o seu jeito de ser e insista em lhe dizer ‘adeus’ você também deve aceitar. São as escolhas necessárias que fazem parte de nossas vidas.

Maria Lúcia de Almeida