segunda-feira, 30 de julho de 2007

O dom de iludir


Quando assistimos à um espetáculo de magia, ficamos encantados quando o mágico vai transformando lenços em aves que voam da cartola ou quando tira moedas por detrás das orelhas das crianças. Aplaudimos o mágico pela ilusão que ele cria. Nesse processo, vemos emergir um paradoxo: a ilusão só é verdadeira porque é produto de um truque que não percebemos. A gente sabe que é um truque, mas as mãos são mais rápidas que os olhos. Assim, enquanto olhamos as mãos, vemos subtrair-se o gesto que determina o exato momento em que a carta escorregou da manga para o jogo do ilusionista.
Mecanismo semelhante acontece com a verdadeira arte de viver, de nós, seres humanos. São vidas falsas que imitam as verdadeiras que se parecem com as falsas de maneira a ir contaminando as certezas e semeando as dúvidas. Nomes, frases, gestos e ações vão se misturando, se enraizando, criando hábitos verdadeiros misturados a falsos motivos que bordam aparências e atitudes. Na adversidade dos critérios individuais, o que pode ser perfeitamente lícito, para outros podem ser irregulares e até inadmissíveis. As variações no tempo e no espaço passa a ser um jogo de ilusões, já que a verdade de hoje costuma não ser a de ontem, e o que algumas áreas aceitam, outras por vezes repelem. Muito próximo das diversidades mais comuns está a freqüente tendência para colocar a questão do certo ou errado em termos de nós e os outros, ou seja, muito do que fazemos e consideramos certo passa a ser errado quando feito por outros e muitas vezes dito da maneira mais crua:"Faça o que eu digo e não o que eu faço."
Levamos muito à sério a advertência de que só os tolos são coerentes, pois quase todos nós mudamos com relativa freqüência de conceitos, atitudes e posições numa total falta ou escassez de coerência.E nesse processo de "mudanças" vamos tecendo, como a velha senhora o tricô, no repetitivo movimento das agulhas que vão enredando os fios, indo e voltando enquanto a "malha" da vida vai sendo desenvolvida. A feição "dos atos e fatos" vai se compondo aos poucos: um ponto, um artifício, uma laçada, dois juntos e, no arremate final , as agulhas voltam para o estojo, enquanto a "malha" está pronta para ser vestida. Resta saber em quem servirá a carapuça.
"La donna é mobile" canta a ópera. Mas não é só as mulheres, os homens também; ambos os sexos são capazes de grandes e numerosas mudanças, tanto de grandeza como de baixeza, em inúmeras gradações. Na música "Dom de iludir" de autoria de Caetano Veloso, é a mulher que diz ao homem: "...você diz a verdade e a verdade é seu dom de iludir, como pode querer que a mulher vá viver sem mentir?".A racionalidade também entra em jogo. Existe uma grande dose de violência oculta naquilo que chamamos de racionalidade: algumas vezes é preciso ser brando, outras duro; e nesse particular La Rochefoucauld nos adverte de que "ninguém deve ser elogiado pela sua bondade quando não se tem força para ser mau."Na construção dos equívocos , são muitos os deslocamentos. Pessoas, episódios, objetos são quase reais, os fatos nos parecem concretos, o jogo faz de conta que é fingido como se fosse verdadeiro, e, no final, a vara de condão vira chicotinho queimado. Assim, por mais atentos ao que chamamos "realidade", o mais importante é justamente aquilo que nos escapa e ao mesmo tempo nos atinge: o efeito de ilusão.
Quem já construiu castelos no ar sabe que não é preciso apagar a luz. A gente pode fechar os olhos e ver melhor as paisagens "sonhadas" e objetos desejados. Quem já viu uma pessoa visitando esses castelos sabe que não é preciso fechar os olhos para abrir as pálpebras dos olhos interiores e observar o outro lado, a outra faceta da realidade que uma nova percepção descortina. Para perceber o movimento do jogo e identificar o objeto de interesse, é necessário que a gente esteja distraído, certos da impossibilidade de saber a verdadeira verdade. Cada olhar que damos pela janela colocamos a semente da vida no estado de criação.
Se pararmos para observar uma borboleta, depois de algum tempo, poderemos nos fazer a pergunta: "Sou eu que observo a borboleta ou será a borboleta que me observa?". "Apenas na separação percebida pela mente é que há uma diferença", diz o cientista, ou, de acordo com Guimarães Rosa: "...se não fosse a borboleta, a lagarta teria razão".
Maria Lúcia de Almeida

domingo, 29 de julho de 2007

Nonada




"Como não se viu, aqui se vê.
Porque, no Gerais, a mesma raça de borboletas,
que em outras partes é trivial regular - cá cresce,
vira muito maior, e com mais brilho,
se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo,
desta luz enorme."

"Pode-se lá, porém, permitir que a palavra nasça do amor da gente,
assim, de broto e jorro: aí a fonte, o miriquilho, o olho-d'água;
ou como uma borboleta sai do bolso da paisagem?"

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas.

sábado, 28 de julho de 2007

Resgate



De um passado
Seus traços
Em leves sopros
Mornos de bem querer
Se recordo
- me aqueço -
Se desperto
- me acendo -
Resgato você!

Maria Lucia de Almeida

Perto do paraíso



Ela já pagou o carma do amor, apaixonando-se por homens errados, que passaram por sua vida
sem deixar lembranças. Ela transmutou a dor, sentiu cada fisgada até o fundo, mas todas as feridas já estão cicatrizadas. Já tirou a pedra do seu sapato, curou os calafrios do corpo e o suor ardente da paixão.
Ela já pagou o carma de ter amigos que partiram e deixaram uma sombra de luz por toda parte. Um rastro de saudade que ficou latejando por muito tempo, mas que agora faz questão de não sentir tanto. Não sofrer em excesso. Só o suficiente para lembrar que esses amigos existiram e que foram protagonistas da sua história.
Ela já pagou o carma da maternidade fazendo filhos com a certeza de que ser mãe a redimiu, a salvou dela mesma, das emoções descontroladas, de uma vida estéril e seca.Ela já pagou o carma da família, de ser um zigoto errado e aprendeu a amar cada irmão, sem desejar muito. Depois que virou mãe, ela compreendeu a própria mãe e hoje a proteje como filha. Já pagou e tornou a pagar carma de não ter casa, de mudar de lugar como se fosse cigana. De não ter pouso nem porto. De rodar a saia e tocar pandeiro de fitas coloridas.
Já pagou o carma de ser inconstante, de mudar de opinião conforme a fase da Lua. Já gritou, esbravejou, se feriu e foi ferida. Já zerou a conta da revolta, da constante inquietação, da mágoa, da imprudência. Das marcas voluntárias feitas com cigarros acesos e fumaça, das tatuagens na pele e na alma.Ela já pagou o carma de viver só, embriagando-se de vinho e de palavras. Da vida louca, sem rumo, sem pé no chão. De viver só de poesia e canção. Já pagou o carma de culpar o outro por suas próprias culpas, de responsabilizar as pessoas por sua irresponsabilidade, de ser vítima, de chorar com pena dela mesma, de pensar que nada fez para ter tantos problemas. De se isentar pelos fracassos, pelos erros e desacertos.
Já pagou o carma de viver querendo um outro mundo, de se rebelar contra tudo e contra todos, de abraçar bandeiras de luta, de ter ídolos, mitos, fantasmas reais. De imaginar que tudo era possível. Já pagou o carma de rezar sem parar, de joelhos, para ficar livre dos demônios do meio-dia.
Ela já pagou o carma de sofrer, mesmo quando o prazer está bem perto. Dor e prazer sempre juntos. Como se não pudesse ser feliz sem se torturar antes, sem viver o suplício da dor cada vez mais perto do prazer. De sofrer para não ser feliz.
Já sofreu o martírio de sair correndo pela noite adentro para se livrar dos vampiros internos. Já se boicotou um milhão de vezes. Já foi a própria inimiga íntima, se atirando no escuro das paixões desvairadas. Ela já pagou o carma de achar que a vida era um inferno, de embrulhar o estômago com as injustiças sociais. Já pagou a conta da desesperança, da loucura vestida de azul, de querer consertar os cabelos, de mudar de cara e corpo.
Ela, finalmente, vai viver o seu darma, o seu caminho de luz, vai descobrir seu buda de ouro escondido, durante séculos, embaixo de argila grossa. Vai descobrir a sua essência de ouro. Vai se tratar bem, se dar de presente uma mulher verdadeira.


Déa Januzzi / Jornal Estado de Minas, domingo, 15 de julho de 2007.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Caminhos



Procurei-te através de estranhos mundos
Nos caminhos perdidos que vão dar no céu
Pelas estradas solitários de meu ser
Em imagens que emanam do sonho
E da imaginação.
Procurei-te nas partes que me faltam
No senso do que seja alma
Nos desejos e possibilidades ainda não vividos
Que jazem no âmago de meu coração.
Procurei-te no eterno
Na força da projeção
Em ideais e convicções
Na definição do bem e mal.
Procurei-te em antigas crenças religiosas
Nas práticas consideradas heresias
Nos bosques que escondem a magia
Procurei-te até no que foi banido de minha vida.
E foi de tanto procurar por ti
Acabei por esquecer o que necessitava
Esqueci o que buscava, e até quem era eu.
E numa estranha e inversa alquimia
Descobri que ao te perseguir por toda vida
Passei meus anos venerando uma mentira
Que disfarças sob o nome de paixão.

Maria Lúcia de Almeida

sábado, 21 de julho de 2007

Caminho de casa



Na terra úmida
No barro vermelho
Uma cerca-viva, cheia de vida.

No campo grande
No manto verde
Casas velhas, cheiro de mato.

Uma borboleta, um beija-flor
Muitas asas em movimento.

Cantar de pássaros
Abrir de janelas
Alegres sons junto ao silêncio.

Lugar longe, caminho curto
Caminho de casa
Saudade de tudo.

Maria Lúcia de Almeida

Senhor José Lourenço


Conheci o Senhor José Lourenço em uma padaria próxima a minha casa. Um senhor negro, de cabeça toda branca, trajando uma camisa social velha, puída pelo tempo, mas muito limpa e bem passada, e uma calça ‘amarrada’ por um cinto que indicava um ex-dono de manequim duas vezes maior. Deveria estar por volta dos seus 80 anos, e conversava num português correto, embora a dicção já estivesse prejudicada pela falta da maioria dos dentes.
Dizia à mocinha que atendia no balcão: - Ainda hei de ganhar na loteria para comprar um queijo mineiro inteirinho e uma grande barra de goiabada cascão.
Não tive a menor dúvida, comprei o queijo e a goiabada, feliz da vida por ter a oportunidade de dar um presente de natal, e entreguei ao senhor José Lourenço.  Para minha surpresa, ele me olhou com um certo espanto, e ao me agradecer o presente, mal conseguia disfarçar o desapontamento.
Foi então que me dei conta do tamanho da minha "mancada". Em um gesto espontâneo de agrado, simplesmente eu havia apagado o sonho de uma pessoa em ganhar na loteria e poder comprar o objeto de seu desejo. O sonho de qualquer pessoa poderia ser um carro importado, mas o sonho daquele senhor era uma goiabada cascão e um queijo mineiro.
Em uma tentativa de ressuscitar parte daquele sonho, eu disse a ele que quando ganhasse na loteria, poderia comprar uma casa, ou algo parecido.
- Uma casa?. Perguntou ele. - Eu morava em casa própria, mas hoje moro em um barraco de aluguel.
 - Mas o que aconteceu com a casa que era do senhor?  - perguntei -.
-  Pois bem, minha casa era toda bem arrumada. Tinha fogão, geladeira, mesa e cadeiras. As coisas todas no lugar. Tinha até minhas ferramentas, pois eu costumava trabalhar de jardineiro e, às vezes, gostava de capinar uma rocinha. Mas um dia, sem mais e nem porquê, escorreguei e bati com a cabeça no chão.
- Minha nossa! Foi grave o acidente? -  perguntei interessada na história -
- Não foi nada grave. Não desmaiei e nem perdi a memória. Ficou um cortezinho de nada, só a senhora vendo. Daí apareceu um pessoal, uma gente que eu nem mesmo conhecia e que dizia ser preciso me levar para um hospital. Continuei insistindo que não havia sido nada, que eu estava bem. Pois, mesmo assim me levaram para aquele asilo no bairro Venda Nova, e por lá me deixaram confinado durante um ano.
- Um ano? Perguntei. O senhor não tinha um filho, um parente qualquer que pudesse ter lhe tirado de lá?.
- Que nada. Só um irmão que está por aí, vagando por esse mundo. Aconteceu que quando eu voltei do asilo, tinham derrubado minha casinha no chão e roubado todas as minhas coisas. Roubaram tudinho. E quem fez isso foi o mesmo homem de quem ganhei o terreno por usucapião. Porque meu terreno eu ganhei por usucapião. É lei, não é?  E o homem é doutor! A senhora acredita? Ele passa por mim e se curva todo. Não olha no meu rosto, não olha nos meus olhos. Mas eu rezo sempre por ele. Peço ao nosso bom Deus que o faça cada vez mais rico, e com muita saúde, para que um dia ele tenha condições de devolver o pedaço de chão deste preto velho aqui. E tenho fé que Jesus Cristo há de me ouvir.
Naquele momento eu me senti bem pequena, impotente mesmo, perante a safadeza existente nesse mundo, e também pequena perante a grandeza daquele ser humano, o senhor José Lourenço.

Maria Lúcia de Almeida

terça-feira, 17 de julho de 2007

Antigas ruas




Andar novamente por aquelas ruas
Só o silêncio nos caminhos
Sentindo o mesmo perfume
A mesma sensação de aventura.
Tantos sonhos e segredos a revelar
Andar e andar até se libertar.
Declamar poesias
Fazer confidências
Chorar mágoas
Planejar suicídios
- valendo tudo -
Quando o propósito
É preencher um coração vazio.

Maria Lúcia de Almeida

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Tempo: passado.




Hoje,
Sinto saudade do meu passado.
Um passado misturado
De coisas boas e coisas más.
Sinto saudade até de coisas que não vivi
Dos sonhos que acalentei
Das esperanças das quais me alimentei
Sinto saudade dos acertos
E até dos erros pelos quais paguei.

Das brigas e das tréguas
Dos dias que foram noites
E das noites mais sombrias
Que jamais viraram dias.
Sei que não foi um passado leve
Mas um passado carregado
De sonhos irrealizáveis
Alegrias efêmeras
E incontáveis pesadelos.
Um passado marcado de muito medo.

Ainda assim, sinto saudade do meu passado
Porque nele eu estava:
Alegre ou triste
Louca ou sonhadora
Culpada ou inocente
Jovem ou inconsequente
Amada ou odiada.

Sinto saudade do meu passado
Porque nele eu me encontrava.
É quando sinto saudade de mim.

Maria Lúcia de Almeida

Em festa


Em noite de lua
Os olhos pintados
Brilham no escuro
Como os de um gato safado.
O perfume
 - feito cúmplice -
Espalha o recado pelo ar.
Nas ruas 

O batido do salto
Acompanha o descompasso 
Do coração - que aos pulos -
Atravessa o asfalto
Vai festejar!

Maria Lúcia de Almeida

domingo, 15 de julho de 2007

Elo frágil



Já são leves
Seus passos
Em meus sonhos
Sua sombra
Em nuances
Mal
reconheço
Seu perfume no ar
- alentece -
Um simples resto
Qual elo frágil
Em minhas saudades
Você permanece.

Maria Lúcia de Almeida

sábado, 14 de julho de 2007

Aquele azul...



Estava sentada à mesa de meu quarto escrevendo, quando uma estranha força conduziu meus olhos para a janela, fixando-os no céu.
Sem dúvida, todo o esplendor da tarde de primavera era o reflexo daquele imaculado azul celeste. Tentei concentrar-me novamente no trabalho, mas não consegui.
Lá estava eu - entregue - mergulhada no infinito azul do céu. E assim fiquei, sem me dar conta do sentimento que me prendia àquele instante.
De repente percebi em mim uma estranha saudade de "não sei bem o que". Assustada com tão inusitada revelação, disparei por alguns labirintos de minha alma. Em qual deles minha saudade permanecia escondida? E assim, envolta no mistério da saudade, fui revistando sonhos, antigas lembranças, revirando mundos, mundos dispersos dentro de mim. Mas nada de me reencontrar.
Finalmente, aos poucos fui me redescobrindo. Prisioneira de um tempo que ainda está por acontecer, refém de um amor que ansiosamente eu aguardo. Amor, que de uma certa forma - quase inexplicável - eu já conheço. Ele se parece com um anjo e vem sempre me visitar. Percebo por nuances, por acaso, por meros instantes o seu bem querer. Sussurra em meus ouvidos a calma paixão dos enamorados. Vislumbro na penumbra o seu belo corpo e através de sua sombra no ar percebo a beleza de seus traços. Com o vento sinto a ternura de suas mãos em meus cabelos, e posso jurar que em leves movimentos chego a sentir meus braços envolvidos em seus abraços.
E ali fiquei até o cair da tarde, viajando por muito além do horizonte, numa tentativa desesperada de me resgatar de um amor que insiste em me fazer prisioneira. Prisioneira pela eterna espera de sua chegada.
Confesso que ainda não consegui o resgate. Mas a magia daquela tarde azul me forneceu uma chave para o meu mistério. Saberei quando meu amor próximo de se revelar. Será nas vezes que uma "estranha força" vinda de profundos e serenos olhos azuis estiver a me enfeitiçar.

Maria Lúcia de Almeida

Ela



Não sei ainda
Onde estamos
Não sei o porquê
De estarmos aqui
Mas enquanto o vento
Estiver soprando
Contra o nosso rosto
"Ela", minha mãe,
Estará de pé
Mudando o leme e a direção
Para que um dia
Esse mesmo vento
Sopre ao nosso favor.

Bruno de Almeida Nazareth

Distração




Eu que pensei
Houvesse encontrado um anjo
E no anjo, o amigo esperado
E no amigo, meu refúgio
Eu que pensei
Que houvesse - finalmente -
Encontrado a paz
E na paz do amigo
O amor tão desejado
Qual nada...
Mera distração!
No mensageiro da ilusão
Na melodia de banjos
Só banalidades
No homem que não é anjo
E na tal sedução clichê, tão iguais!

Maria Lucia de Almeida

Reveses de Cenas


Poderia falar de filmes que são a "onda" do momento, filmes de extrema violência - não só física, também moral - como "Kill Bill" de Quentin Tarantino ou " SinCity" de Frank Miller, a história em quadrinhos transportada para as telas do cinema. Dois filmes considerados pela crítica e pela maioria dos jovens brasileiros como os melhores filmes do ano de 2005.
Tudo bem, é preciso concordar que Tarantino é um cineasta consagrado e que já produziu ótimos filmes (bem melhores que "Kill Bill"), e que em "SinCity" foi usada uma das técnicas mais aprimoradas, incríveis e revolucionárias do cinema. É verdade, não tem como não gostar.
No entanto, o excesso de violência tem me deixado cabisbaixa, de estômago embrulhado e, pior do que isso, muito triste com a nossa sombria juventude que vibra cada vez mais com cenas de brutalidade e com "sangue jorrando pelas telas".
Pensando sobre isso, resolvi assistir a um filme bem leve, daqueles que a gente chama de "água com açúcar", só para descontrair e apaziguar o espírito.
Aluguei para assistir a uma sequência de filmes: "Antes do amanhecer" e "Antes do pôr do sol". Diretor praticamente desconhecido, atores idem, filmes que a maioria dos jovens na faixa etária dos 18 aos 25 anos jamais pensaria em alugar numa vídeo locadora.
Pois bem, de tudo, um pouco fica gravado em nós dessa deliciosa história romântica do encontro de dois jovens aventureiros, Jesse e Celine, que se "esbarram" por acaso em um expresso europeu e, para se conhecerem melhor, decidem ficarem juntos por um dia (até o amanhecer), em um passeio por Viena.
Jesse, rapaz de origem norte-americana, família de pais divorciados, espírito livre e inquieto, e ao mesmo tempo prático e racionalista. Celine, jovem de beleza ímpar - "lembra um anjo de Botticelli"-família de origem européia, de pais bem casados e felizes, espírito questionador, filosófico e romântico.
A linguagem do romance é sedutora, trata-se de um grande e inteligente diálogo que é travado entre os dois jovens enquanto caminham por Viena. Discorrem sobre ideias, ideais, relacionamentos, família, sexo, casamento, sonhos, espiritualidade e, principalmente, sobre o amor. Frases e palavras se entrecruzam com a crescente emoção de um e de outro personagem. A emoção aumenta com o desenrolar da história o que confere maior movimentação ao enredo, deixando o espectador cada vez mais envolvido no processo de conhecimento e autoconhecimento dos dois jovens.
O crescente encantamento que percorre as cenas perpassa a tela, chega até nós. O mesmo processo encantatório se estende ao segundo filme - "Antes do pôr do sol" - dessa vez com o cenário na bela Paris, onde acontece um surpreendente e delicioso 'The end'.
É assim que essa sequência de filmes acordam em nós a lembrança de outras histórias que ouvimos, vivemos ou inventamos, e que nos traz de volta um passado mais romântico, mais feliz, que talvez nem notamos, mas que se acha engajado em nossa história. E saturados da intensa insensibilidade dos filmes de violência, descobrimos, com certo alívio que, em jovens cineastas, já desponta uma nova suavidade.

Maria Lúcia de Almeida

Sétima Arte




Sozinha e minhas reminiscências, depois de rever o filme "O Céu que nos partege", permito que a lembrança de nós dois invada toda a sala.
Ainda extasiada pelo aprimoramento e beleza das imagens de Bertolucci, neste meu particular momento, só mesmo você, meu amigo, poderia aparecer por aqui. Foram tantas vezes, e olha que me pareciam ilimitadas, em que nos encontramos no boteco da esquina com a cabeça impregnada de fantasias cinematográficas, e doidinhos para trocarmos nossas idéias. Lugarzinho agradável, de meia luz aconchegante, cheirinho de murta exalando das jardineiras, e um rapaz de afinação duvidosa que tocava MPB no vilão. A música, a gente mal ouvia, servia apenas de fundo musical para nossas animadas conversas. Não íamos ao boteco para namorar, e sim para degustar uma cervejinha e as nossas diversas opiniões sobre os filmes que havíamos assistido durante a semana. Tão animadas eram nossas falas, lembra-se? Requintadas de detalhes e recheadas pelos nossos diversos estados de alma. Penso que se os diretores dos filmes estivessem presentes a esses nossos encontros, com certeza, teriam incrementado algumas cenas aproveitando o colorido ou o preto e branco de nossas impressões. Até escolhemos o boteco da esquina propositalmente,pois nele, os banheiros masculino e feminino tinham, respectivamente, os nomes de Humphrey Boughart e Ingrid Bergman. E não é que um botequim pintado de um "rosa sujo" estava para a gente como a própria Casablanca? Pois preste atenção, meu querido amigo, que hoje, ao rever " O Céu que nos protege", a força das imagens desse impressionante filme, pareceu-me remeter a mim e a você ao próprio continente africano em toda sua realidade. São cenas de calor, imundice, pobreza, doenças e a vertigem do delírio de estados alterados da mente invadindo a realidade. Moscas que cobrem todas as superfícies, inclusive as humanas. Há também muita beleza nas fotografias do deserto, refletindo com sutileza e ao mesmo tempo profundidade o deserto interior de dois amantes. É uma história de amor, de dor, de morte e de loucura. Gostaria que você visse o filme, principalmente depois de ler um pequeno trecho que extraí do livro de Paul Bowles ( do qual o filme foi baseado) e que não me canso de reler, pois considero de extrema beleza:" A morte está sempre em nosso caminho, mas o fato de não sabermos quando vai chegar nos salva da finitude da vida, esta terrível precisão que tanto odiamos. Por causa da nossa ignorância, nós pensamos na vida como um poço sem fundo. E no entanto, cada coisa só acontece um certo número de vezes, muito poucas, na realidade. Quantas vezes você se lembrará de uma certa tarde em sua infância, uma tarde que é parte tão profunda de seu ser que você não pode conceber sua vida sem ela? Talvez quatro ou cinco vezes. Ou talvez nunca. Quantas vezes mais vai olhar o nascer da lua? Talvez vinte vezes...e tudo parece ilimitado."
Quantas vezes mais , meu inesquecível amigo, vou me lembrar de umas certas e deliciosas tardes em nosso boteco da esquina?


Maria Lúcia de Almeida

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Metamorfose




Como me esquecer de uma certa tarde de verão tão morna e iluminada pela luz do sol?
Jamais poderia imaginar o efeito que faria em mim, a embriaguez daquela luz misturada ao êxtase sensual do calor persistente daquela tarde.
Um rastro de nuvens cortava o céu; o céu por cima de todas as cabeças, por cima de todos os edifícios. Uma suave música de flauta era entoada na porta de um café. As pessoas transitavam com a alegria de um feriado. Minha cidade pareceu-me tão quente e cheia de vida que pensei em jamais deixá-la. Refugiei-me à sombra de um Ipê florido. Não olhava nada, mas via tudo. Uma sinfonia maravilhosa formou-se em mim com as sensações assimiladas. A hora passava e minha emoção alentecia, assim como a marcha do sol que se fazia mais lerda.
Passei a escolher ser ou coisa por que me apaixonasse. Pareceu-me então, a cada instante novo não ter ainda nada visto. Subitamente, ofuscando com especial luminosidade a própria luz do sol, me apareceu você. Surpreendi-me com seu silêncio e serenidade. A paz que lhe dominava me enternecia. Tive muitas vezes a sensação de quase misturar-me à sombra de sua luz. Não era apenas uma bela imagem, era a própria beleza acontecida.
Mas o que eu poderia saber sobre aquele ser? O que teria ele para mim a não ser uma intensa beleza que passa e... que queima depois de passar. Tentei desvendar o momento. Seria amor?
O que me deixou maravilhada naquele instante foi algo como o amor , mas não era amor, e sim um sentimento de intensa beleza e que não vinha apenas de um ser, mas de todo o instante. Coloquei toda a minha felicidade naquele momento e deixei meu espírito entorpecido, como para uma metamorfose.

Maria Lúcia de Almeida

terça-feira, 10 de julho de 2007

Revelações





Ao seguir viagem pela estrada do tempo
Surge diante de mim
- feito janela que se abre à beira do caminho -
Um lindo lago de águas claras.

Tendo o silêncio como único companheiro,
Paro e fico a observar a superfície do lago.
E ali, minha vida escorre diante de meus olhos,
Como a chuva na terra escorre de mansinho.

Passam-se emoções, detalhes e segredos
Num leve, tranqüilo e inexplicável espetáculo
Toda minha história desta forma recontada,
Em pequenos e grandes acontecimentos.

O sol, como luz em fuga, aos poucos se esconde
E fico ali, sozinha, a enxergar muita verdade
Descubro que o fim do mundo fica a séculos de distância,
E que alguns lagos podem nos conduzir à claridade.

Maria Lúcia de Almeida

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Um certo cara na minha vida


Existe um certo cara que um dia apareceu na minha vida. Não sei como definir sua aparição. Recordo-me de uma noite de festa, virada de ano, quase meia-noite. Aproximou-se assim meio tímido, como que saído de sonhos, disfarçando o mago ou escondendo asas de anjo.
De onde veio - ele me contou - de uma pequena e hospitaleira cidade do interior das Gerais.
Ex-seminarista, buscou na religião se encontrar, mas ao sentir seu espírito aprisionado, recolocou as asas na alma, seguiu estrada. Caminhou por esse vasto mundo à fora, vagou por entre céus e infernos sempre a oferecer seu amor ao próximo, sua ajuda camarada e lindos poemas que compunha em troca de abrigo ou de alguma comida. Muito bom poeta. Humano, mas de uma humanidade criança, onde dores e desilusões de uma vida não conseguiram afetar, nem seu mundo de sonhos, nem a sua bela poesia.
Lembro-me exatamente do instante em que conversávamos e aconteceu aquele tumulto. Alguns rapazes , atraentes e bem vestidos , começaram uma briga. Um deles sacou um revolver e atirou. Meu amigo poeta, rapidamente, jogou seu corpo por cima de uma jovem que estava próxima, desviando-a do caminho da bala e salvando aquela vida.
Maior "zumzum" no salão...ninguém entendeu ao certo o que havia acontecido. Até que uma voz gritou:
- "Aquele rapaz, aquele andarilho que espalha poesia, foi ele que começou tudo, vamos pegá-lo, vamos levá-lo para a delegacia!
Procurei desesperadamente pelo meu amigo poeta, mas ele havia desaparecido.
E aquele olhar - que jamais conseguirei esquecer - olhar que espelhava o amor, a amizade, a sinceridade e a ternura, se perdeu num mundo cheio de maldade.

Maria Lúcia de Almeida

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Jamais


Amando eu vou viver
Mas não lhe espero.
Longe de você eu tenho paz.
Mas já faz tanto tempo, tempo atrás
Que mais longe estou, mais eu lhe quero.

Por que viver sem você é tão difícil?
Se mesmo estando longe, está tão perto.
É mais que loucura, é supremo sacrifício
Ter-lhe, assim, a vida toda em pensamento.

Porém, se um dia voltar ao meu destino
Dar-lhe-ei estes versos sem sentido,
Mas lhe querer em mim, talvez jamais.

Maria Lúcia de Almeida