Que a família implodiu, já sabemos. Isso não é de hoje. Dela restou uma determinada figura de homem, uma determinada figura de mulher. Figura de uma célula conjugal. Mas esta vem se “desterritorializando” a passos de gigante. O capital inflacionou nosso jeito de amor: estamos inteiramente desfocados.
Dois extremos: em um é o medo da desterritorialização que sucumbimos, ou seja, nos enclausuramos na simbiose, nos intoxicamos de familialismo, nos anestesiamos a toda sensação de mundo – endurecemos. No outro extremo – quando já conseguimos não resistir à desterritrorialização e, mergulhados em seu movimento, tornamo-nos pura intensidade, pura emoção de mundo – um outro perigo nos espreita. Fatal agora: inteiramente desprovidos de territórios, nos fragilizamos até desmanchar irremediavelmente.
Entre esses dois extremos, ou essas diferentes maneiras de morrer, ensaiam-se desajeitadamente, outros jeitos de viver.
Penélope e Ulisses – sobreviventes do naufrágio da família – encarnam em todos nós, nos arrastando para essa maldita simbiose que nos persegue, homens e mulheres, só variando seu estilo. Essa maldita vontade de espelho. Essa sede insaciável de absoluto, de eterno. Na imobilidade ranheta de Penélope ( que tece, mas eternamente os mesmos fios) ou no movimento compulsivo de Ulisses (que nada tece), é sempre a mesma chatice, a mesma impotência, o mesmo sufoco.
Penélope controla o tempo: tece a trama da eternidade. Ulisses controla o espaço: monta a imagem da totalidade. Dois estilos complementares da vontade de absoluto: imobilidade morna e melosa, mobilidade fira e seca. É a mesma esterilidade. Uma só neurose: equilíbrio homeostático. Medo de viver. Vontade de morrer.
Penélope e Ulisses somos todos – em diferentes matizes, a cada momento. Além disso, não é sempre o mesmo Ulisses que Penélope espera voltar; não é sempre a mesma Penélope que Ulisses abandona ao partir – eles variam, e cada vez mais. No entanto , a cena é sempre a mesma : há sempre uma mulher que desempenha a Penélope para ele, sempre um homem que desempenha o Ulisses para ela ( ou vive-versa). Remanescentes ativos de uma família desaparecida, que reproduzimos artificialmente sob as mais variadas formas. Reterritorialização, eterna condenação a “fazer cenas” em família, maneiras e maneiras de teimar que um dia “isto” ainda fica inteiro...
Mas...se um dia , o Ulisses – presente em cada um de nós, homens e mulheres – sai de cena: desgarra-se definitivamente de Penélope. Ele não voltará nunca mais. Supera o medo, já não precisa de espelho na espera dela, nem na de ninguém: entrega-se de corpo e alma à desterritorialização . E uma outra cena se instaura: a das máquinas celibatárias.
Sem território fixo, as máquinas celibatárias erram pelo mundo. Com cada fio que se apresenta – humano ou não – elas tecem , se tecem. E cada novo fio, elas esquecem , se esquecem. Sem identidade, são pura paixão: nascem de cada estado fugaz de intensidade que consomem. Seu vôo, já longe do sufocante mundo dos Ulisses e Penélopes, atinge universos insuspeitados. A vida se expande. Há uma alegria nessa expansão. Grandeza celibatária.
No entanto, há também uma miséria nisso tudo: é que nunca articulam-se os fios, nunca territórios se organizam. E assim o potencial de expansão contido na recém-conquistada intimidade com o mundo se desperdiça. Dispersa.
Nessa fúria de tecer com tantos fios, tão rapidamente substituídos, não mais conseguimos nos deter. O outro, descartável, é a mera paisagem que, quando muito, mimetizamos . E, almas penadas, viajamos por entre essas paisagens que se sucedem, assim como nós mesmos. Nunca pousamos em paisagem alguma de modo a constituir território e, reorganizados, prosseguimos viagem. Miséria celibatária. Há uma certa amargura nisso tudo.
Duas cenas, dois perigos, um só dano: entre a simbiose e a desterritorialização vivida como finalidade em si mesma, quem sai perdendo é o amor.
Dois extremos: em um é o medo da desterritorialização que sucumbimos, ou seja, nos enclausuramos na simbiose, nos intoxicamos de familialismo, nos anestesiamos a toda sensação de mundo – endurecemos. No outro extremo – quando já conseguimos não resistir à desterritrorialização e, mergulhados em seu movimento, tornamo-nos pura intensidade, pura emoção de mundo – um outro perigo nos espreita. Fatal agora: inteiramente desprovidos de territórios, nos fragilizamos até desmanchar irremediavelmente.
Entre esses dois extremos, ou essas diferentes maneiras de morrer, ensaiam-se desajeitadamente, outros jeitos de viver.
Penélope e Ulisses – sobreviventes do naufrágio da família – encarnam em todos nós, nos arrastando para essa maldita simbiose que nos persegue, homens e mulheres, só variando seu estilo. Essa maldita vontade de espelho. Essa sede insaciável de absoluto, de eterno. Na imobilidade ranheta de Penélope ( que tece, mas eternamente os mesmos fios) ou no movimento compulsivo de Ulisses (que nada tece), é sempre a mesma chatice, a mesma impotência, o mesmo sufoco.
Penélope controla o tempo: tece a trama da eternidade. Ulisses controla o espaço: monta a imagem da totalidade. Dois estilos complementares da vontade de absoluto: imobilidade morna e melosa, mobilidade fira e seca. É a mesma esterilidade. Uma só neurose: equilíbrio homeostático. Medo de viver. Vontade de morrer.
Penélope e Ulisses somos todos – em diferentes matizes, a cada momento. Além disso, não é sempre o mesmo Ulisses que Penélope espera voltar; não é sempre a mesma Penélope que Ulisses abandona ao partir – eles variam, e cada vez mais. No entanto , a cena é sempre a mesma : há sempre uma mulher que desempenha a Penélope para ele, sempre um homem que desempenha o Ulisses para ela ( ou vive-versa). Remanescentes ativos de uma família desaparecida, que reproduzimos artificialmente sob as mais variadas formas. Reterritorialização, eterna condenação a “fazer cenas” em família, maneiras e maneiras de teimar que um dia “isto” ainda fica inteiro...
Mas...se um dia , o Ulisses – presente em cada um de nós, homens e mulheres – sai de cena: desgarra-se definitivamente de Penélope. Ele não voltará nunca mais. Supera o medo, já não precisa de espelho na espera dela, nem na de ninguém: entrega-se de corpo e alma à desterritorialização . E uma outra cena se instaura: a das máquinas celibatárias.
Sem território fixo, as máquinas celibatárias erram pelo mundo. Com cada fio que se apresenta – humano ou não – elas tecem , se tecem. E cada novo fio, elas esquecem , se esquecem. Sem identidade, são pura paixão: nascem de cada estado fugaz de intensidade que consomem. Seu vôo, já longe do sufocante mundo dos Ulisses e Penélopes, atinge universos insuspeitados. A vida se expande. Há uma alegria nessa expansão. Grandeza celibatária.
No entanto, há também uma miséria nisso tudo: é que nunca articulam-se os fios, nunca territórios se organizam. E assim o potencial de expansão contido na recém-conquistada intimidade com o mundo se desperdiça. Dispersa.
Nessa fúria de tecer com tantos fios, tão rapidamente substituídos, não mais conseguimos nos deter. O outro, descartável, é a mera paisagem que, quando muito, mimetizamos . E, almas penadas, viajamos por entre essas paisagens que se sucedem, assim como nós mesmos. Nunca pousamos em paisagem alguma de modo a constituir território e, reorganizados, prosseguimos viagem. Miséria celibatária. Há uma certa amargura nisso tudo.
Duas cenas, dois perigos, um só dano: entre a simbiose e a desterritorialização vivida como finalidade em si mesma, quem sai perdendo é o amor.
Suely Rolnik
Um comentário:
este texto, publicado no livro de Guattari e Rolnik, Micropolitica Cartografias do desejo, é de autoria de Suely Rolnik...
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