Porque era sábado de carnaval.
Porque era preciso cair na folia, inventar a fantasia, reinventar a alegria e brincar. Até (com) a morte?
E no embalo das marchinhas de carnaval, lá ia a moça desfilando, empostada em sua macabra fantasia.
Dos pés ao ombro era uma mulher como as outras, livre e solta em seu vestido de renda. Mas a máscara que encobria seu rosto era muito branca, que nem anjos de mármore, que nem boneca empalhada. A boca costurada e o olhar pintado de negro, distante, como luz pela vidraça, lembrava o silêncio das covas, lembrava a cara da morte.
O conjunto não era feio, nem assustador. Era antes comovente e esperado, pois no carnaval - vivos e mortos - todos nos sentimos unidos, companheiros e misturados. Até trazia no alto da cabeça um bonito arranjo de flores, servia - quem sabe - para alertar que no cemitério deveriam se plantar menos homens e mais flores.
Destemida na aparência, seguia a moça a brincar e a brindar com a vida, tão naturalmente como a própria morte.
Alguns curiosos indagavam: - Seria essa uma alma errante? Ou quem sabe uma pessoa de palavras maliciosas, cujos poderes divinos costuraram-lhe a boca?
Ah, essa sim seria a prova de que poderes divinos realmente existem, mas nada se soube.
O fato é que de nada adiantaram os disfarces, pois o que mais mudou, foi o que não mudou nada. Empalhada ou costurada, eis que a moça passou por nós sem uma pausa de reconhecimento. Olhar ignorante e indiferente, estranha, uma simples cópia em carne e osso da pessoa de outrora que nos amou, que amamos, e que há tantos anos já desfila como morta.
E com ela lá se foi toda a esperança de um milagre, que - talvez - esse carnaval pudesse significar.
"O Dia do Juízo Final", quando ao som de todas as trombetas (ou de todas as marchinhas) nos levantaríamos.E ali reunidos, num só grupo, novamente mortais e tão iguais, abraçaríamos uns aos outros, num ato de solidariedade e perdão, cientes de que não haveriam mais inimigos e nem intrusos.
Maria Lúcia de Almeida