" O vento que leva o que amamos é o mesmo vento que traz coisas que aprendemos a amar."
O Tempo e o Vento
Maria Lucia de Almeida
Escrever livremente é experimentar um momento de doçura que a gente em silêncio transforma em palavras. Momento profundamente singular e magicamente passível de concretude - expresso e desvendado - da nossa poesia oculta.
" O vento que leva o que amamos é o mesmo vento que traz coisas que aprendemos a amar."
O Tempo e o Vento
Maria Lucia de Almeida
Há uma delicadeza serena em viver os últimos anos. Como o entardecer que se estende dourado, a vida se torna mais silêncio do que pressa, mais presença do que planos.
Cada manhã é um presente embrulhado em luz,cada lembrança, um jardim secreto onde se pode repousar.
Já não é preciso correr, nem provar, nem vencer. Agora é tempo de sentir: o vento, a chuva, o riso, o afeto.
Viver os últimos anos é arte sutil: é saber despedir-se devagar, com gratidão nos olhos e o coração aberto feito céu de outono.
Porque mesmo no fim, há começo: no gesto simples, no olhar sereno, no amor que permanece.
Maria Lucia de Almeida.
Hoje eu acordei com a alma leve, tão leve que acho que tropecei em mim mesma de tão solta. Não aconteceu nada , e talvez esse seja justamente o milagre: nada aconteceu e, ainda assim, eu estou feliz. Sabe aquele tipo de felicidade que não tem motivo nem desculpa? Pois é, tô nessa. Felicidade gratuita, sem CPF na nota. Não ganhei na loteria , ninguém me mandou flores, e o tempo lá fora está indeciso, como eu na frente da geladeira. E mesmo assim, olha eu aqui, rindo sozinha porque uma formiga se perdeu na pia e deu meia-volta como se dissesse: "Opa, desculpa, endereço errado."
Tem dias em que meu coração resolve fazer festa sem aviso prévio. Ele liga a música, estoura confete invisível e dança, mesmo que eu esteja só passando café. E quem sou eu pra reclanar? A verdade é que tem uma coisa deliciosa em não precisar de razões pra sorrir. Como se o universo, por um segundo, cochichasse: “Vai lá, pega esse instante de graça e aproveita. Ninguém tá olhando.” E eu aproveito. Porque ser feliz por nada é, no fundo, ser feliz por tudo que a gente esquece de notar: a luz atravessando a cortina, o vento rosçando na palmeira, o roncar da Nina ao meu lado, a sensação boa de estar em paz com o próprio caos.
Então hoje, se me perguntarem o porquê desse meu instante flash, eu vou responder com a maior sinceridade do mundo: não sei. Só sei que tá bom demais ser feliz assim ,de graça, à toa, e sem a menor vontade .
Maria Lucia de Almeida
Por tantos anos fui tantas : filha, namorada, esposa, mãe , amiga, que me perdi no meio do caminho. Só agora, com os fios de prata nos cabelos e a pele marcada pelo tempo, começo a me ver de verdade. E no silêncio que a maturidade traz, me reencontro. Descubro um prazer calmo em estar só, uma liberdade doce em dizer 'não' sem culpa. Aprendi que não preciso ser eterna para ser intensa. Que minha força grita, mas sustenta. E, pela primeira vez, sinto que estou inteira. Só agora, quando o tempo desacelera meus desejos é que começo a me conhecer. Sou feita de ausências e de ecos, de promessas que não se cumpriram e de silêncios que me ensinaram a escutar. E é isso que me dá forma. Aceito minhas falhas como quem aceita a chuva, inevitável, necessária, ás vezes, bela. A solidão que antes parecia um castigo, hoje é quase uma amiga, meio que um ' jardim secreto': com ela aprendi a escutar meus próprios pensamentos, a dançar sem música, a rir sozinha de lembranças que só eu guardo. Mas nem sempre a solidão é leve. Há dias em que ela pesa, em que o silêncio se estende demais e a ausência machuca, pesando no peito como pedra. Mas aprendi a recebê-la sem medo, pois é nela que encontro o contorno exato de mim. É estranho me descobrir agora, depois de tantos papeis desempenhados, como se só agora, eu tivesse tempo e coragem de me olhar por dentro e a descobrir que carrego alegria como quem carrega um raio de sol no bolso, discreta, quente, inesperada. Ela nasce em pequenas coisas : no vento que bate na janela, no café quente, no cheiro da roupa lavada, em um livro ou filme que me toca fundo. E a tristeza...ah, essa vem em passos suaves, senta-se ao meu lado, e por vezes choramos juntas. Já não luto contra ela. Deixei de querer ser só luz. Porque aprendi a ser inteira, caber em mim luz e sombra, festa e vazio. E nessa entrega, me descubro inteira, e imperfeita e profundamente minha. E nesse espaço que é só meu, sou, enfim, de verdade.
Maria Lucia de Almeida
A vida, esse espetáculo sem roteiro fixo, exige de nós uma certa dose de insanidade para sobreviver. É preciso ser muito louco para acordar todos os dias e enfrentar o mundo, onde, em pleno século 21, homens fazem guerras entre si, mulheres e crianças morrem na guerra ou de fome, onde ainda existem homens em condições degradantes de trabalho, onde jovens não horam pai e mãe, e a maldade quase sempre prevalece sobre a bondade. No caos cotidiano a loucura tornou-se a nossa mais fiel companheira. E tão loucos somos, que seguimos acreditando, desejando, tentando – apesar de tudo. Lembrei-me, agora, do que disse a escritora Clarice Lispector em um de seus livros: “Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive é o próprio ‘apesar de’ nos empurra para a frente”. E nessa loucura, descobrimos que somos loucos porque ainda amamos, mesmo com o coração marcado por tantas partidas. Loucos porque sonhamos, mesmo com o peso das decepções nas costas e mais: que a felicidade não é um destino, é um instante fugaz, mas nosso. Sejamos felizes então, mesmo que a felicidade venha em dozes pequenas como o riso compartilhado com quem entende nossa loucura sem julgamentos. Sejamos felizes nas imperfeições, nas pausas, nos tropeços. Sejamos felizes porque estamos vivos, e isso, por si só já é um ato de coragem em um mundo que nos quer conformados. E que cada gargalhada seja uma forma de resistência, cada abraço um refúgio, cada suspiro um lembrete que, mesmo sendo loucos, ainda podemos ser felizes. E se a vida é uma peça improvisada, que sejamos protagonistas das nossas próprias histórias, mesmo quando tudo parece ruir a nossa volta. Porque, no fundo, o equilíbrio perfeito é só uma ilusão, e o que nos mantém em pé, é essa dança descompassada entre o sonho e a realidade, buscando entre a loucura e a poesia, o brilho que nos faz vivos.
Maria Lúcia de Almeida
Natal / 2024