terça-feira, 27 de maio de 2025

Instante flash

Hoje eu acordei com a alma leve, tão leve que acho que tropecei em mim mesma de tão solta. Não aconteceu nada , e talvez esse seja justamente o milagre: nada aconteceu e, ainda assim, eu estou feliz. Sabe aquele tipo de felicidade que não tem motivo nem desculpa? Pois é, tô nessa. Felicidade gratuita, sem CPF na nota. Não ganhei na loteria , ninguém me mandou flores, e o tempo lá fora está indeciso, como eu na frente da geladeira. E mesmo assim, olha eu aqui, rindo sozinha porque uma formiga se perdeu na pia e deu meia-volta como se dissesse: "Opa, desculpa, endereço errado."

Tem dias em que meu coração resolve fazer festa sem aviso prévio. Ele liga a música, estoura confete invisível e dança,  mesmo que eu esteja só passando café. E quem sou eu pra reclanar? A verdade é que tem uma coisa deliciosa em não precisar de razões pra sorrir. Como se o universo, por um segundo, cochichasse: “Vai lá, pega esse instante de graça e aproveita. Ninguém tá olhando.” E eu aproveito. Porque ser feliz por nada é, no fundo, ser feliz por tudo que a gente esquece de notar: a luz atravessando a cortina, o vento rosçando na palmeira, o roncar da Nina ao meu lado, a sensação boa de estar em paz com o próprio caos.

Então hoje, se me perguntarem o porquê desse meu instante flash,  eu vou responder com a maior sinceridade do mundo: não sei. Só sei que tá bom demais ser feliz assim ,de graça, à toa, e sem a menor vontade .

Maria Lucia de Almeida

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Enfim, de verdade.

 Por tantos anos fui tantas : filha, namorada, esposa, mãe , amiga, que me perdi no meio do caminho. Só agora, com os fios de prata nos cabelos e a pele marcada pelo tempo, começo a me ver de verdade. E no silêncio que a maturidade traz, me reencontro. Descubro um prazer calmo em estar só, uma liberdade doce em dizer 'não' sem culpa. Aprendi que não preciso ser eterna para ser intensa. Que minha força grita, mas sustenta. E, pela primeira vez, sinto que estou inteira.  Só agora, quando o tempo desacelera meus desejos é que começo a me conhecer. Sou feita de ausências e de ecos, de promessas que não se cumpriram e de silêncios que me ensinaram a escutar. E é isso que me dá forma. Aceito minhas falhas como quem aceita a chuva, inevitável, necessária, ás vezes, bela. A solidão que antes parecia um castigo, hoje é quase uma amiga, meio que um ' jardim secreto': com ela aprendi a escutar meus próprios pensamentos, a dançar sem música, a rir sozinha de lembranças que só eu guardo. Mas nem sempre a solidão é leve. Há dias em que ela pesa, em que o silêncio se estende demais e a ausência machuca, pesando no peito como pedra. Mas aprendi a recebê-la sem medo, pois é nela que encontro o contorno exato de mim. É estranho me descobrir agora, depois de tantos papeis  desempenhados, como se só agora,  eu tivesse tempo e coragem de me olhar por dentro e a descobrir que carrego alegria como quem carrega um raio de sol no bolso, discreta, quente, inesperada.  Ela nasce em pequenas coisas : no vento que bate na janela, no café quente, no cheiro da roupa lavada, em um livro ou filme que me toca fundo. E a tristeza...ah, essa vem em passos suaves, senta-se ao meu lado, e por vezes choramos juntas. Já não luto contra ela. Deixei de querer ser só luz. Porque aprendi a ser inteira, caber em mim luz e sombra, festa e vazio. E nessa entrega, me descubro inteira, e imperfeita e profundamente minha. E nesse espaço que é só meu, sou, enfim, de verdade.

Maria Lucia de Almeida


domingo, 13 de abril de 2025

O Tempo

 



O tempo escorre entre os dedos como areia fina, e cada segundo é um sussurro antigo que se desfaz no vento. 
Os dias dançam em círculos e adormecem em crepúsculo, enquanto envelhecemos devagar, sem perceber, como pedra que o rio suavemente molda. 
O tempo não grita, não pede licença. Ele apenas passa, bordando rugas na pele e saudade no peito, deixando o cheiro doce do que já foi é o silêncio curioso do que virá. 
Ainda assim, há beleza em sua marcha lenta e certa — pois tudo que é eterno demais, esquece como é ser belo.

Maria Lucia de Almeida

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Sejamos felizes porque loucos, nós já somos.

 

A vida, esse espetáculo sem roteiro fixo, exige de nós uma certa dose de insanidade para sobreviver. É preciso ser muito louco para acordar todos os dias e enfrentar o mundo, onde, em pleno século 21, homens fazem guerras entre si, mulheres e crianças morrem na guerra ou de fome, onde ainda existem homens em condições degradantes de trabalho, onde jovens não horam pai e mãe, e a maldade quase sempre prevalece sobre a bondade. No caos cotidiano a loucura tornou-se a nossa mais fiel companheira. E tão loucos somos, que seguimos acreditando, desejando, tentando – apesar de tudo. Lembrei-me, agora, do que disse a escritora Clarice Lispector em um de seus livros: “Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive é o próprio ‘apesar de’ nos empurra para a frente”. E nessa loucura, descobrimos que somos loucos porque ainda amamos, mesmo com o coração marcado por tantas partidas. Loucos porque sonhamos, mesmo com o peso das decepções nas costas e mais: que a felicidade não é um destino, é um instante fugaz, mas nosso. Sejamos felizes então, mesmo que a felicidade venha em dozes pequenas como o riso compartilhado com quem entende nossa loucura sem julgamentos. Sejamos felizes nas imperfeições, nas pausas, nos tropeços. Sejamos felizes porque estamos vivos, e isso, por si só já é um ato de coragem em um mundo que nos quer conformados. E que cada gargalhada seja uma forma de resistência, cada abraço um refúgio, cada suspiro um lembrete que, mesmo sendo loucos, ainda podemos ser felizes. E se a vida é uma peça improvisada, que sejamos protagonistas das nossas próprias histórias, mesmo quando tudo parece ruir a nossa volta. Porque, no fundo, o equilíbrio perfeito é só uma ilusão, e o que nos mantém em pé, é essa dança descompassada entre o sonho e a realidade, buscando entre a loucura e a poesia, o brilho que nos faz vivos.

Maria Lúcia de Almeida

Natal / 2024

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Fim de ano ou fim de mundo?

Esperava ansiosa o final do ano e este, quando  chegou, veio agregado ao fim do mundo. E não  veio com meteoros flamejantes, nem com o rugido das trombetas apocalípticas, veio numa segunda-feira qualquer,  porque o caos sempre escolhe dias ordinários. 
Primeiro o wi-fi caiu, depois os gatos pararam de farrear nos telhados e isso, para mim, foi um sinal claro de que algo estava profundamente errado. As pessoas sairam às  ruas com o olhar perdido, não por medo das chamas, mas porque a Internet  não funcionava mais. Olhei para o céu e ele, em um gesto dramático,  resolveu mudar de cor, um roxo fosforescente que nenhum filtro de instragram poderia reproduzir Enquanto eu contemplava extasiada a valsa desajeita da das placas tectônicas,  a humanidade teimosa e um tanto cômica,  decidiu fazer o que sempre fez: reclamar.
" Fim do mundo? Logo agora que comprei  vestido e sapatos novos ? "
" Podia ter esperado terminar o mês,  aí eu não precisava pagar as contas". 
Assim, entre o tremor dos continentes e a perplexidade dos incrédulos,  alguém  abriu uma garrafa de vinho, porque o mundo pode  acabar, mas não antes de se fazer um brinde!
E no último suspiro da Terra, como toda boa poetisa, eu apreciava as estrelas caindo do céu como enfeites de uma festa cósmica. 
Bom, pelo menos o espetáculo foi bonito de se ver. E, então... o mundo acabou. Quieto. Exceto pelo som distante de uma notificação que ninguém nunca mais leria :
 " Cuidem bem da mãe-natureza."

Maria Lucia de Almeida 





  

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

BLADE RUNNER

 


Entre as sombras futurísticas de uma cidade perdida, onde a chuva e o neon dançam um balé de cores, ergue-se a obra-prima cinematográfica chamada Blade Runner.
Sob a brilhante direção de Ridley Scott, o filme nos conduz a uma jornada inquietante e reflexiva em um mundo imaginário e  melancólico, onde a essência humana é questionada, e as máquinas são dotadas de uma complexidade emocional profunda, de uma identidade tal com o ser humano, que ecoa na alma do espectador.
 Nos labirintos da cidade decadente, acompanhamos o caçador de replicantes, interpretado magistralmente por Harrison Ford, mergulhar em um dilema moral, oscilando entre o dever e a empatia com os androides, entre a humanidade e a artificialidade.  Os olhos dos replicantes refletem o vazio e, ao mesmo tempo, a   busca incessante que vai além da existência programada, eles ‘replicam’ por mais vida. Em meio a essa teia de sentimentos, a presença enigmática de Rachael (Sean Young) surge como catalizador de reflexões. Através do olhar de Rachael, uma androide, somos convidados a confrontar nossas próprias limitações. Ela é a perfeição imperfeita, um anseio por algo mais humano do que a própria humanidade. A trilha sonora de Vangelis abraça cada cena, elevando-a à transcendência, enquanto a atmosfera noturna envolve-nos em sentimentos inexprimíveis.
Blade Runner é uma ode à poesia do cinema, uma celebração da imaginação humana e um convite à reflexão sobre as complexidades do ser. Nele, a tecnologia e a humanidade dançam uma valsa etérea, tecendo uma teia de significados e emoções que ultrapassa  o tempo e o espaço. 
Em Blade Runner não encontramos apenas um filme, mas uma experiência transcendental que ecoa em nossa alma como um lembrete de que, mesmo em um mundo repleto de máquinas, ainda seremos capazes de ir em busca de sentido e significado para contemplar o que realmente nos torna humanos. 

Maria Lúcia de Almeida

segunda-feira, 3 de abril de 2023

"Escrevo para libertar palavras e faço isso antes do pôr do Sol."


Quando estou triste, gosto de contemplar o pôr do sol; e a cada espetáculo desse que contemplo, inspira-me o desejo de partir para um oeste tão distante quanto aquele onde o sol sumiu.  De acordo com Rubem Alves, somos seres crepusculares a espera do pôr do sol de nossas vidas,  é verdade, pois sendo a tarde a velhice do dia, quando o sol se põe no horizonte, uma pequena morte ali sempre acontece. Ah, e como é belo o pôr do sol visto pelo olhar do poeta ao enfatizar a finitude da vida e dos afetos. E eu, que bem sei o que é ser flor nas asas de uma ventania, alargo meu horizonte para que o sol possa se pôr 'redondinho', sem precárias valentias, sem mais expectativas ou sofrimento. E com os olhos fitos no poente, deixo a paz falar manso no silêncio de meu coração. Percebo o quão fúteis foram meus dias repletos de esperança para um final feliz, daqueles de cinema, sabe, em que no final 'tudo se ajeita'. Agora percebo que a sabedoria que vem do natural é muito mais doce, é a sabedoria da maturidade a me dizer: "tudo é porque tem que ser, tudo um dia se acaba porque precisa acabar, ou quem sabe, porque esteja perto o momento do nosso 'pôr do sol'. O pensamento voa nos traços da memória e pergunto ao  silêncio o que ainda tem a me dizer que precisa ser compreendido, e ele me faz lembrar das nossas perdas constantes, daquelas  não só dos entes queridos, mas perdas em geral, de espaço, de tempo, de planos e de certezas que se vão, naturalmente, findando com o tempo e que também fazem parte da nossa jornada de vida. E daquelas perdas tão necessárias para nossa integridade moral que  são as relacionadas ao medo: das injustiças, das mesquinharias, das covardes ameaças de abandono e da solidão. Isso porque a gente aprende a reconhecer a força que temos e, principalmente, a força que vem da bondade divina, que nos dá coragem e nos mantêm em pé todos os dias. E sendo a  verdade a filha do tempo, tudo que ainda lhe peço, senhor tempo, antes de meu pôr do sol, é que eu saiba cuidar muito bem de mim mesma, com leveza, dignidade e aceitação. E, principalmente, que eu saiba tirar de mim a perigosa ânsia de que ' tudo tem que ser feliz até o final'.

Maria Lúcia de Almeida