domingo, 9 de agosto de 2009

Olhos de Gude



Tardes de céu muito azul, são os dias de inverno da minha cidade. E durante uma dessas tardes, em um café na livraria da Travessa, foi que me apareceu, de súbito, por um instante quase surreal, aquela criaturinha:
- Compra bala na minha mão, moça!
O que mais me emocionou naquele instante, não foi somente o fato de mais uma menina de rua estar ali, circulando entre os clientes, vendendo balas baratas para sobreviver. Foi, principalmente, a beleza angelical de no máximo sete anos de idade, corpinho moreno e franzino, cabelos cacheados e olhos bem escuros, redondinhos, que mais pareciam duas bolinhas de gude. E se não fosse pelos humildes trajes, eu diria que ali, bem na minha frente, estava uma das mais belas meninas retratada pelo artista Renoir.
 Refreando o instinto maternal que ditava a minha enorme vontade de puxá-la para o meu colo e lhe fazer muito carinho, o que fiz, naquele momento, foi uma malfadada pergunta:
- Por onde anda a sua mãe, menina?
O que estava por trás da minha pergunta não era tão somente a vontade de saber por onde andava a mãe biológica, a madrasta talvez, que jogava no desamparo sua prenda mais linda, uma miniatura de anjo de pés descalços e mãozinhas em flor, a mendigar por uns trocados. E sem pensar em razões ideológicas, eu me perguntava também pela mãe pátria e por seus filhos; os filhos da rua, os filhos do medo, filhos da fome e do sofrimento. Milhares de crianças que estão por todos os lugares, debaixo de marquises e pontes, dependurados em ônibus, a dizer mentiras, pois são mentiras o que a mãe-pátria lhes ensina mesmo antes de compreenderem o que é o bem ou o mal. O único calor que conhecem é o que vem do asfalto. Acolhe-os as marquises dos grandes edifícios, num grande e frio abraço de concreto. Meninos de rua que não têm vida de criança, pois são precoces soldados que roubam para a guerra da sobrevivência.
Mas de que adianta praguejar contra uma  realidade, que admitindo ou não, sou prescrita seguidora? Fico no meu canto encolhida, impotente, no peito a raiva e o desgosto, outra vez o desespero e o desanimo, pois nada pude fazer pela menina dos olhos de gude que, ao se ver indagada de sua mãe, fugiu feito um foguete, desaparecendo na próxima esquina.

Maria Lucia de Almeida

Um comentário:

helentry disse...

Tocante! Como isto tem sido banalizado pela sociedade!
Parabéns, amiga, pélo estili delicado de tratar o assunto