sábado, 21 de julho de 2007

Senhor José Lourenço


Conheci o Senhor José Lourenço em uma padaria próxima a minha casa. Um senhor negro, de cabeça toda branca, trajando uma camisa social velha, puída pelo tempo, mas muito limpa e bem passada, e uma calça ‘amarrada’ por um cinto que indicava um ex-dono de manequim duas vezes maior. Deveria estar por volta dos seus 80 anos, e conversava num português correto, embora a dicção já estivesse prejudicada pela falta da maioria dos dentes.
Dizia à mocinha que atendia no balcão: - Ainda hei de ganhar na loteria para comprar um queijo mineiro inteirinho e uma grande barra de goiabada cascão.
Não tive a menor dúvida, comprei o queijo e a goiabada, feliz da vida por ter a oportunidade de dar um presente de natal, e entreguei ao senhor José Lourenço.  Para minha surpresa, ele me olhou com um certo espanto, e ao me agradecer o presente, mal conseguia disfarçar o desapontamento.
Foi então que me dei conta do tamanho da minha "mancada". Em um gesto espontâneo de agrado, simplesmente eu havia apagado o sonho de uma pessoa em ganhar na loteria e poder comprar o objeto de seu desejo. O sonho de qualquer pessoa poderia ser um carro importado, mas o sonho daquele senhor era uma goiabada cascão e um queijo mineiro.
Em uma tentativa de ressuscitar parte daquele sonho, eu disse a ele que quando ganhasse na loteria, poderia comprar uma casa, ou algo parecido.
- Uma casa?. Perguntou ele. - Eu morava em casa própria, mas hoje moro em um barraco de aluguel.
 - Mas o que aconteceu com a casa que era do senhor?  - perguntei -.
-  Pois bem, minha casa era toda bem arrumada. Tinha fogão, geladeira, mesa e cadeiras. As coisas todas no lugar. Tinha até minhas ferramentas, pois eu costumava trabalhar de jardineiro e, às vezes, gostava de capinar uma rocinha. Mas um dia, sem mais e nem porquê, escorreguei e bati com a cabeça no chão.
- Minha nossa! Foi grave o acidente? -  perguntei interessada na história -
- Não foi nada grave. Não desmaiei e nem perdi a memória. Ficou um cortezinho de nada, só a senhora vendo. Daí apareceu um pessoal, uma gente que eu nem mesmo conhecia e que dizia ser preciso me levar para um hospital. Continuei insistindo que não havia sido nada, que eu estava bem. Pois, mesmo assim me levaram para aquele asilo no bairro Venda Nova, e por lá me deixaram confinado durante um ano.
- Um ano? Perguntei. O senhor não tinha um filho, um parente qualquer que pudesse ter lhe tirado de lá?.
- Que nada. Só um irmão que está por aí, vagando por esse mundo. Aconteceu que quando eu voltei do asilo, tinham derrubado minha casinha no chão e roubado todas as minhas coisas. Roubaram tudinho. E quem fez isso foi o mesmo homem de quem ganhei o terreno por usucapião. Porque meu terreno eu ganhei por usucapião. É lei, não é?  E o homem é doutor! A senhora acredita? Ele passa por mim e se curva todo. Não olha no meu rosto, não olha nos meus olhos. Mas eu rezo sempre por ele. Peço ao nosso bom Deus que o faça cada vez mais rico, e com muita saúde, para que um dia ele tenha condições de devolver o pedaço de chão deste preto velho aqui. E tenho fé que Jesus Cristo há de me ouvir.
Naquele momento eu me senti bem pequena, impotente mesmo, perante a safadeza existente nesse mundo, e também pequena perante a grandeza daquele ser humano, o senhor José Lourenço.

Maria Lúcia de Almeida

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