sem deixar lembranças. Ela transmutou a dor, sentiu cada fisgada até o fundo, mas todas as feridas já estão cicatrizadas. Já tirou a pedra do seu sapato, curou os calafrios do corpo e o suor ardente da paixão.
Ela já pagou o carma de ter amigos que partiram e deixaram uma sombra de luz por toda parte. Um rastro de saudade que ficou latejando por muito tempo, mas que agora faz questão de não sentir tanto. Não sofrer em excesso. Só o suficiente para lembrar que esses amigos existiram e que foram protagonistas da sua história.
Ela já pagou o carma da maternidade fazendo filhos com a certeza de que ser mãe a redimiu, a salvou dela mesma, das emoções descontroladas, de uma vida estéril e seca.Ela já pagou o carma da família, de ser um zigoto errado e aprendeu a amar cada irmão, sem desejar muito. Depois que virou mãe, ela compreendeu a própria mãe e hoje a proteje como filha. Já pagou e tornou a pagar carma de não ter casa, de mudar de lugar como se fosse cigana. De não ter pouso nem porto. De rodar a saia e tocar pandeiro de fitas coloridas.
Já pagou o carma de ser inconstante, de mudar de opinião conforme a fase da Lua. Já gritou, esbravejou, se feriu e foi ferida. Já zerou a conta da revolta, da constante inquietação, da mágoa, da imprudência. Das marcas voluntárias feitas com cigarros acesos e fumaça, das tatuagens na pele e na alma.Ela já pagou o carma de viver só, embriagando-se de vinho e de palavras. Da vida louca, sem rumo, sem pé no chão. De viver só de poesia e canção. Já pagou o carma de culpar o outro por suas próprias culpas, de responsabilizar as pessoas por sua irresponsabilidade, de ser vítima, de chorar com pena dela mesma, de pensar que nada fez para ter tantos problemas. De se isentar pelos fracassos, pelos erros e desacertos.
Já pagou o carma de viver querendo um outro mundo, de se rebelar contra tudo e contra todos, de abraçar bandeiras de luta, de ter ídolos, mitos, fantasmas reais. De imaginar que tudo era possível. Já pagou o carma de rezar sem parar, de joelhos, para ficar livre dos demônios do meio-dia.
Ela já pagou o carma de sofrer, mesmo quando o prazer está bem perto. Dor e prazer sempre juntos. Como se não pudesse ser feliz sem se torturar antes, sem viver o suplício da dor cada vez mais perto do prazer. De sofrer para não ser feliz.
Já sofreu o martírio de sair correndo pela noite adentro para se livrar dos vampiros internos. Já se boicotou um milhão de vezes. Já foi a própria inimiga íntima, se atirando no escuro das paixões desvairadas. Ela já pagou o carma de achar que a vida era um inferno, de embrulhar o estômago com as injustiças sociais. Já pagou a conta da desesperança, da loucura vestida de azul, de querer consertar os cabelos, de mudar de cara e corpo.
Ela, finalmente, vai viver o seu darma, o seu caminho de luz, vai descobrir seu buda de ouro escondido, durante séculos, embaixo de argila grossa. Vai descobrir a sua essência de ouro. Vai se tratar bem, se dar de presente uma mulher verdadeira.
Déa Januzzi / Jornal Estado de Minas, domingo, 15 de julho de 2007.
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